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Short story

Clarice Lispector

When writing I cannot fabricate as in a painting,
when I fabricate a color with workmanship. But I am trying to write you
with my whole body, sending an arrow that pierces the word’s tender and
neuralgic center. I don’t paint ideas, I paint the more unreachable
“for ever”. Or “for never”, it’s the same.

Clarice Lispector

When writing I cannot fabricate as in a painting,
when I fabricate a color with workmanship. But I am trying to write you
with my whole body, sending an arrow that pierces the word’s tender and
neuralgic center. I don’t paint ideas, I paint the more unreachable
“for ever”. Or “for never”, it’s the same.

É com uma alegria tăo profunda. É uma tal aleluia.
Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano
da dor de separaçăo mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém
me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio — já estudei
matemática que é a loucura do raciocínio — mas agora quero o plasma —
quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo:
medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O
próximo instante é feito por mim? ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos
com a respiraçăo. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.

Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensăo
do instante-já que de tăo fugidio năo é mais porque agora tornou-se um
novo instante-já que também năo é mais. Cada coisa tem um instante em
que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem
no ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço.
Quero possuir os átomos do tempo. E quero capturar o presente que pela
sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade
me escapa, a atualidade sou eu sempre no já. Só no ato do amor — pela
límpida abstraçăo de estrela do que se sente — capta-se a incógnita do
instante que é duramente cristalina e vibrante no ar e a vida é esse
instante incontável, maior que o acontecimento em si: no amor o
instante de impessoal jóia refulge no ar, glória estranha de corpo,
matéria sensibilizada pelo arrepio dos instantes — e o que se sente é
ao mesmo tempo que imaterial tăo objetivo que acontece como fora do
corpo, faiscante no alto, alegria, alegria é matéria de tempo e é por
excelęncia o instante. E no instante está o é dele mesmo. Quero captar
o meu é. E canto aleluia para o ar assim como faz o pássaro. E meu
canto é de ninguém. Mas năo há paixăo sofrida em dor e amor a que năo
se siga uma aleluia.

Meu tema é o instante? meu tema de vida. Procuro
estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os
instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos —
só me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no
tempo há espaço para mim.

Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o
sabor-a-ti é abstrato como o instante. É também com o corpo todo que
pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo
comigo mesma. Năo se compreende música: ouve-se. Ouve-me entăo com teu
corpo inteiro Quando vieres a me ler perguntarás por que năo me
restrinjo ŕ pintura e ŕs minhas exposiçőes, já que escrevo tosco e sem
ordem. É que agora sinto necessidade de palavras — e é novo para mim o
que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A
palavra é a minha quarta dimensăo.

Hoje acabei a tela de que te falei: linhas redondas
que se interpenetram em traços finos e negros, e tu, que tens o hábito
de querer saber por que — e porque năo me interessa, a causa é matéria
de passado — perguntarás por que os traços negros e finos? é por causa
do mesmo segredo que me faz escrever agora como se fosse a ti, escrevo
redondo, enovelado e tépido, mas ŕs vezes frígido como os instantes
frescos, água do riacho que treme sempre por si mesma. O que pintei
nessa tela é passível de ser fraseado em palavras? Tanto quanto possa
ser implícita a palavra muda no som musical.

Vejo que nunca te disse como escuto música — apóio de
leve a măo na eletrola e a măo vibra espraiando ondas pelo corpo todo:
assim ouço a eletricidade da vibraçăo, substrato último no domínio da
realidade, e o mundo treme nas minhas măos.

E eis que percebo que quero para mim o substrato
vibrante da palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de
que tudo o que sei năo posso dizer, só sei pintando ou pronunciando
sílabas cegas de sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas
tęm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a
vibraçăo última. Para te dizer o meu substrato faço uma frase de
palavras feitas apenas dos instantes-já. Lę entăo o meu invento de pura
vibraçăo sem significado senăo o de cada esfuziante sílaba, lę o que
agora se segue: “com o correr dos séculos perdi o segredo do Egito,
quando eu me movia em longitude, latitude e altitude com açăo
energética dos elétrons, prótons, nęutrons, no fascínio que é a palavra
e a sua sombra”. Isso que te escrevi é um desenho eletrônico e năo tem
passado ou futuro: é simplesmente já.

Também tenho que te escrever porque tua seara é a das
palavras discursivas e năo o direto de minha pintura. Sei que săo
primárias as minhas frases, escrevo com amor demais por elas e esse
amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os trabalhos. Este năo
é um livro porque năo é assim que se escreve. O que escrevo é um só
clímax? Meus dias săo um só clímax: vivo ŕ beira.

Ao escrever năo posso fabricar como na pintura,
quando fabrico artesanalmente uma cor. Mas estou tentando escrever-te
com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e
nevrálgico da palavra. Meu corpo incógnito te diz: dinossauros,
ictiossauros e plessiossauros, com sentido apenas auditivo, sem que por
isso se tornem palha seca, e sim úmida. Năo pinto idéias, pinto o mais
inatingível “para sempre”. Ou “para nunca”, é o mesmo. Antes de mais
nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura.
Quero como poder pegar com a măo a palavra. A palavra é objeto? E aos
instantes eu lhes tiro o sumo de fruta. Tenho que me destituir para
alcançar cerne e semente de vida. O instante é semente viva.

A harmonia secreta da desarmonia: quero năo o que
está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas
palavras săo o luxo de meu silęncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas
piruetas — escrevo por profundamente querer falar.

Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silęncio.

E se eu digo “eu” é porque năo ouso dizer “tu”, ou
“nós” ou “uma pessoa”. Sou obrigada ŕ humildade de me personalizar me
apequenando mas sou o és-tu.

Sim, quero a palavra última que também é tăo primeira
que já se confunde com a parte intangível do real. Ainda tenho medo de
me afastar da lógica porque caio no instintivo e no direto, e no
futuro: a invençăo do hoje é o meu único meio de instaurar o futuro.
Desde já é futuro, e qualquer hora é hora marcada. Que mal porém tem eu
me afastar da lógica? Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do
que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu
simplesmente escapulo năo deixando, gęnero năo me pega mais. Estou num
estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tăo atraente e
pessoal a ponto de năo poder pintá-lo ou escrevę-lo. Parece com
momentos que tive contigo, quando te amava, além dos quais năo pude ir
pois fui ao fundo dos momentos. É um estado de contato com a energia
circundante e estremeço. Uma espécie de doida, doida harmonia. Sei que
meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao
mundo, primitiva como os deuses que só admitem vastamente o bem e o mal
e năo querem conhecer o bem enovelado como em cabelos no mal, mal que é
o bom.

Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria
morte e outros nascem — fixo os instantes de metamorfose e é de
terrível beleza a sua seqüęncia e concomitância.

Agora está amanhecendo e a aurora é de neblina branca
nas areias da praia. Tudo é meu, entăo. Mal toco em alimentos, năo
quero me despertar para além do despertar do dia. Vou crescendo com o
dia que ao crescer me mata certa vaga esperança e me obriga a olhar
cara a cara o duro sol. A ventania sopra e desarruma os meus papéis.
Ouço esse vento de gritos, estertor de pássaro aberto em oblíquo vôo. E
eu aqui me obrigo ŕ severidade de uma linguagem tensa, obrigo-me ŕ
nudez de um esqueleto branco que está livre de humores. Mas o esqueleto
é livre de vida e enquanto vivo me estremeço toda. Năo conseguirei a
nudez final. E ainda năo a quero, ao que parece.

Esta é a vida vista pela vida. Posso năo ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa.

Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada
instante. Aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um
objeto, a sua sombra. Năo quero perguntar por que, pode-se perguntar
sempre por que e sempre continuar sem resposta: será que consigo me
entregar ao expectante silęncio que se segue a uma pergunta sem
resposta? Embora adivinhe que em algum lugar ou em algum tempo existe a
grande resposta para mim.

E depois saberei como pintar e escrever, depois da
estranha mas íntima resposta. Ouve-me, ouve o silęncio. O que te falo
nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me
escapa e no entanto vivo dela e estou ŕ tona de brilhante escuridăo. Um
instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se
desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas num
caleidoscópio.

Entro lentamente na minha dádiva a mim mesma,
esplendor dilacerado pelo cantar último que parece ser o primeiro.
Entro lentamente na escrita assim como já entrei na pintura. É um mundo
emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras — limiar
de entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou
nascer.

E se muitas vezes pinto grutas é que elas săo o meu
mergulho na terra, escuras mas nimbadas de claridade, e eu, sangue da
natureza, — grutas extravagantes e perigosas, talismă da Terra, onde se
unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que săo doidos
pela sua própria natureza maléfica procuram refúgio. As grutas săo o
meu inferno. Gruta sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou
saudade? espantosa, espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do
tempo. Dentro da caverna obscura tremeluzem pendurados os ratos com
asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo aranhas penugentas e negras.
Ratos e ratazanas correm espantados pelo chăo e pelas paredes. Entre as
pedras o escorpiăo. Carangueaw6kx, iguais a eles mesmo desde a
pré-história, através de mortes e nascimentos, pareceriam bestas
ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se
arrastam na penumbra. E tudo isso sou eu. Tudo é pesado de sonho quando
pinto uma gruta ou te escrevo sobre ela — de fora dela vem o tropel de
dezenas de cavalos soltos a patearem com cascos secos as trevas, e do
atrito dos cascos o júbilo se liberta em centelhas: eis-me, eu e a
gruta, no tempo que nos apodrecerá.

Quero pôr em palavras mas sem descriçăo a existęncia
da gruta que faz algum tempo pintei — e năo sei como. Só repetindo o
seu doce horror, caverna de terror e das maravilhas, lugar de almas
aflitas, inverno e inferno, substrato imprevisível do mal que está
dentro de uma terra que năo é fértil. Chamo a gruta pelo seu nome e ela
passa a viver com seu miasma. Tenho medo entăo de mim que sei pintar o
horror, eu, bicho de cavernas ecoantes que sou, e sufoco porque sou
palavra e também o seu eco.

Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga,
acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em
alta velocidade toca minimamente no chăo. E a parte da roda que ainda
năo tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e
torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e
me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em
mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das
palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um
instante, quero o seu fluxo.

Nova era, esta minha, e ela me anuncia para já. Tenho
coragem? Por enquanto estou tendo: porque venho do sofrido longe, venho
do inferno de amor mas agora estou livre de ti. Venho do longe — de uma
pesada ancestralidade. Eu que venho da dor de viver. E năo a quero
mais. Quero a vibraçăo do alegre. Quero a isençăo de Mozart. Mas quero
também a inconseqüęncia. Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me ŕ
liberdade e agüento-a năo como um dom mas com heroísmo: sou
heroicamente livre. E quero o fluxo.

Năo é confortável o que te escrevo. Năo faço
confidęncias. Antes me metalizo. E năo te sou e me sou confortável;
minha palavra estala no espaço do dia. O que saberás de mim é a sombra
da flecha que se fincou no alvo. Só pegarei inutilmente uma sombra que
năo ocupa lugar no espaço, e o que apenas importa é o dardo. Construo
algo isento de mim e de ti — eis a minha liberdade que leva ŕ morte.

Neste instante-já estou envolvida por um vagueante
desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água
que corre da bica na relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim
e sombras que invento já e agora e que săo o meio concreto de falar
neste meu instante de vida. Meu estado é o de jardim com água correndo.
Descrevendo-o tento misturar palavras para que o tempo se faça. O que
te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha.

Agora é dia feito e de repente de novo domingo em
erupçăo inopinada. Domingo é dia de ecos — quentes, secos, e em toda a
parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo
das marteladas compassadas — de onde vęm os ecos de domingo? Eu que
detesto domingo por ser oco. Eu, que quero a coisa mais primeira porque
é fonte de geracăo — eu que ambiciono beber água na nascente da fonte —
eu que sou tudo isso, devo por sina e trágico destino só conhecer e
experimentar os ecos de mim, porque năo capto o mim propriamente dito.
Estou numa expectativa estupefaciente, tręmula, maravilha, de costas
para o mundo, e em alguma parte foge o inocente esquilo. Plantas,
plantas. Fico dormitando no calor estivo do domingo que tem moscas
voando em torno do açucareiro. Alarde colorido, o do domingo, e
esplendidez madura. E tudo isso pintei há algum tempo e em outro
domingo. E eis aquela tela antes virgem, agora coberta de cores
maduras. Moscas azuis cintilam diante de minha janela aberta para o ar
da rua entorpecida. O dia parece a pele esticada e lisa de uma fruta
que numa pequena catástrofe os dentes rompem, o seu caldo escorre.
Tenho medo do domingo maldito que me liqüifica.

Para me refazer e te refazer volto a meu estado de
jardim e sombra, fresca realidade, mal existo e se existo é com
delicado cuidado. Em redor da sombra faz calor de suor abundante. Estou
viva. Mas sinto que ainda năo alcancei os meus limites, fronteiras com
o quę? sem fronteiras, a aventura da liberdade perigosa. Mas arrisco,
vivo arriscando. Estou cheia de acácias balançando amarelas, e eu que
mal e mal comecei a minha jornada, começo-a com um senso de tragédia,
adivinhando para que oceano perdido văo os meus passos de vida. E
doidamente me apodero dos desvăos de mim, meus desvarios me sufocam de
tanta beleza. Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo isso
ganhei ao deixar de te amar.

Escrevo-te como exercício de esboços antes de pintar.
Vejo palavras. O que falo é puro presente e este livro é uma linha reta
no espaço. É sempre atual, e o fotômetro de uma máquina fotográfica se
abre e imediatamente fecha, mas guardando em si o flash. Mesmo que eu
diga “vivi” ou “viverei” é presente porque eu os digo já.

Comecei estas páginas também com o fim de preparar-me
para pintar. Mas agora estou tomada pelo gosto das palavras, e quase me
liberto do domínio das tintas: sinto uma voluptuosidade em ir criando o
que te dizer. Vivo a cerimônia da iniciaçăo da palavra e meus gestos
săo hieráticos e triangulares.

Sim, esta é a vida vista pela vida. Mas de repente
esqueço o como captar o que acontece, năo sei captar o que existe senăo
vivendo aqui cada coisa que surgir e năo importa o que: estou quase
livre de meus erros. Deixo o cavalo livre correr fogoso. Eu, que troto
nervosa e só a realidade me delimita.

E quando o dia chega ao fim ouço os grilos e torno-me
toda repleta e ininteligível. Depois vivo a madrugada azulada que vem
com o seu bojo cheio de passarinhos — será que estou te dando uma idéia
do que uma pessoa passa em vida? E cada coisa que me ocorra eu anoto
para fixá-la. Pois quero sentir nas măos o nervo fremente e vivaz do já
e que me reaja esse nervo como buliçosa veia. E que se rebele, esse
nervo de vida, e que se contorça e lateje. E que se derramem safiras,
ametistas e esmeraldas no obscuro erotismo da vida plena: porque na
minha escuridăo enfim treme o grande topázio, palavra que tem luz
propria.

Estou ouvindo agora uma música selvática, quase que
apenas batuque e ritmo que vem de uma casa vizinha onde jovens drogados
vivem o presente. Um instante mais de ritmo incessante, incessante, e
acontece-me algo terrível.

É que passarei por causa do ritmo em seu paroxismo —
passarei para o outro lado da vida. Como te dizer? É terrível e me
ameaça. Sinto que năo posso mais parar e me assusto. Procuro me
distrair do medo. Mas há muito já parou o martelar real: estou sendo o
incessante martelar em mim. Do qual tenho que me libertar. Mas năo
consigo: o outro lado de mim me chama. Os passos que ouço săo os meus.

Como se arrancasse das profundezas da terra as
nodosas raízes de árvore descomunal, é assim que te escrevo, e essas
raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de
fortes mulheres envolvidas em serpentes e em carnais deseaw6kx de
realizaçăo, e tudo isso é uma prece de missa negra, e um pedido
rastejante de amém: porque aquilo que é ruim está desprotegido e
precisa da anuęncia de Deus: eis a criaçăo.

Será que passei sem sentir para o outro lado? O outro
lado é uma vida latejantemente infernal Mas há a transfiguraçăo do meu
terror: entăo entrego-me a uma pesada vida toda em símbolos pesados
como frutas maduras. Escolho parecenças erradas mas que me arrastam
pelo enovelado. Uma parte mínima de lembrança do bom-senso de meu
passado me mantém roçando ainda o lado de cá. Ajude-me porque alguma
coisa se aproxima e ri de mim. Depressa, salva-me.

Mas ninguém pode me dar a măo para eu sair: tenho que
usar a grande força — e no pesadelo em arranco súbito caio enfim de
bruços no lado de cá. Deixo-me ficar jogada no chăo agreste, exausta, o
coraçăo ainda pula doido, respiro ŕs golfadas. Estou a salvo? enxugo a
testa molhada. Ergome devagar tento dar os primeiros passos de uma
convalescença fraca. Estou conseguindo me equilibrar.

Năo, isto tudo năo acontece em fatos reais mas sim no
domínio de — de uma arte? sim, de um artifício por meio do qual surge
uma realidade delicadíssima que passa a existir em mim: a
transfiguraçăo me aconteceu.

Mas o outro lado, do qual escapei mal e mal,
tornou-se sagrado e a ninguém conto o meu segredo. Parece-me que em
sonho fiz no outro lado um juramento, pacto de sangue. Ninguém saberá
de nada: o que sei é tăo volátil e quase inexistente que fica entre mim
e eu.

Sou um dos fracos? fraca que foi tomada por ritmo
incessante e doido? se eu fosse sólida e forte nem ao menos teria
ouvido o ritmo? Năo encontro resposta: sou. É isto apenas o que me vem
da vida. Mas sou o quę? a resposta é apenas: sou o quę. Embora ŕs vezes
grite: năo quero mais ser eu!! mas eu me grudo a mim e
inextricavelmente forma-se uma tessitura de vida.

Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é
longa, é sofrida mas é vivida. Porque agora te falo a sério: năo estou
brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e
ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. E um silęncio se
evola sutil do entrechoque das frases.

Entăo escrever é o modo de quem tem a palavra como
isca: a palavra pescando o que năo é palavra. Quando essa năo-palavra —
a entrelinha — morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se
pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas
aí cessa a analogia: a năo-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O
que salva entăo é escrever distraidamente.

Năo quero ter a terrível limitaçăo de quem vive
apenas do que é passível de fazer sentido. Eu năo: quero é uma verdade
inventada.

O que te direi? te direi os instantes. Exorbito-me e
só entăo é que existo e de um modo febril. Que febre: conseguirei um
dia parar de viver? ai de mim, que tanto morro. Sigo o tortuoso caminho
das raízes rebentando a terra, tenho por dom a paixăo, na queimada de
tronco seco contorço-me ŕs labaredas. Ŕ duraçăo de minha existęncia dou
uma significaçăo oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante:
reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja
no tique-taque dos relógios.

Para me interpretar e formular-me preciso de novos
sinais e articulaçőes novas em formas que se localizem aquém e além de
minha história humana. Transfiguro a realidade e entăo outra realidade.
sonhadora e sonâmbula, me cria. E eu inteira rolo e ŕ medida que rolo
no chăo vou me acrescentando em folhas, eu, obra anônima de uma
realidade anônima só justificável enquanto dura a minha vida. E depois?
depois tudo o que vivi será de um pobre supérfluo.

Mas por enquanto estou no meio do que grita e pulula.
E é sutil como a realidade mais intangível. Por enquanto o tempo é
quanto dura um pensamento.

É de uma pureza tal esse contato com o invisível núcleo da realidade.

Sei o que estou fazendo aqui: conto os instantes que pingam e săo grossos de sangue.

Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas
que mal tem isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em
fúria, improviso diante da platéia.

É tăo curioso ter substituído as tintas por essa
coisa estranha que é a palavra. Palavras — movo-me com cuidado entre
elas que podem se tornar ameaçadoras; posso ter a liberdade de escrever
o seguinte: “peregrinos, mercadores e pastores guiavam suas caravanas
rumo ao Tibet e os caminhos eram difíceis e primitivos”. Com esta frase
fiz uma cena nascer, como num flash fotográfico.

O que diz este jazz que é improviso? diz braços
enovelados em pernas e as chamas subindo e eu passiva como uma carne
que é devorada pelo adunco agudo de uma águia que interrompe seu vôo
cego. Expresso a mim e a ti os meus deseaw6kx mais ocultos e consigo com
as palavras uma orgíaca beleza confusa. Estremeço de prazer por entre a
novidade de usar palavras que formam intenso matagal. Luto por
conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensaçőes e
pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha
liberdade. É tamanha a liberdade que pode escandalizar um primitivo mas
sei que năo te escandalizas com a plenitude que consigo e que é sem
fronteiras perceptíveis. Esta minha capacidade de viver o que é redondo
e amplo — cerco-me por plantas carnívoras e animais legendários, tudo
banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo mítico. Vou adiante de
modo intuitivo e sem procurar uma idéia: sou orgânica. E năo me indago
sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor de uma intensa alegria — e
para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens.

Năo sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura
para mim mesma. Só tive inicialmente uma visăo lunar e lúcida, e entăo
prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente
morre. Năo é um recado de idéias que te transmito e sim uma instintiva
volúpia daquilo que está escondido na natureza e que adivinho. E esta é
uma festa de palavras. Escrevo em signos que săo mais um gesto que voz.
Tudo isso é o que me habituei a pintar mexendo na natureza íntima das
coisas. Mas agora chegou a hora de parar a pintura para me refazer,
refaço-me nestas linhas. Tenho uma voz. Assim como me lanço no traço de
meu desenho, este é um exercício de vida sem planejamento. O mundo năo
tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiraçăo. Deixo-me
acontecer.

Estou dentro dos grandes sonhos da noite: pois o
agora-já é de noite. E canto a passagem do tempo: sou ainda a rainha
dos medas e dos persas e sou também a minha lenta evoluçăo que se lança
como uma ponte levadiça num futuro cujas névoas leitosas já respiro
hoje. Minha aura é mistério de vida Eu me ultrapasso abdicando de mim e
entăo sou o mundo: sigo a voz do mundo, eu mesma de súbito com voz
única.

O mundo: um emaranhado de fios telegráficos em eriçamento E a luminosidade no entanto obscura: esta sou eu diante do mundo

Equilíbrio perigoso, o meu, perigo de morte de alma.
A noite de hoje me olha com entorpecimento, azinhavre e visgo. Quero
dentro desta noite que é mais longa que a vida, quero, dentro desta
noite, vida crua e sangrenta e cheia de saliva. Quero a seguinte
palavra: esplendidez, esplendidez é a fruta na sua suculęncia, fruta
sem tristeza. Quero lonjuras. Minha selvagem intuiçăo de mim mesma. Mas
o meu principal está sempre escondido. Sou implícita. E quando vou me
explicitar perco a úmida intimidade.

De que cor é o infinito espacial? é da cor do ar.

Nós — diante do escândalo da morte.

Ouve apenas superficialmente o que digo e da falta de
sentido nascerá um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida
alta e leve. A densa selva de palavras envolve espessamente o que sinto
e vivo, e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que fica fora
de mim. A natureza é envolvente: ela me enovela toda e é sexualmente
viva, apenas isto: viva. Também eu estou truculentamente viva — e lambo
o meu focinho como o tigre depois de ter devorado o veado.

Escrevo-te na hora mesma em si própria. Desenrolo-me
apenas no atual. Falo hoje — năo ontem nem amanhă — mas hoje e neste
próprio instante perecível. Minha liberdade pequena e enquadrada me une
ŕ liberdade do mundo — mas o que é uma janela senăo o ar emoldurado por
esquadrias? Estou asperamente viva. Vou embora — diz a morte sem
acrescentar que me leva consigo. E estremeço em respiraçăo arfante por
ter que acompanhá-la. Eu sou a morte. É neste meu ser mesmo que se dá a
morte — como te explicar? É uma morte sensual. Como morta ando por
entre o capim alto na luz esverdeada das hastes: sou Diana a Caçadora
de ouro e só encontro ossadas. Vivo de uma camada subjacente de
sentimentos: estou mal e mal viva.

Mas esses dias de alto verăo de danaçăo sopram-me a
necessidade de renúncia. Renuncio a ter um significado, e entăo o doce
e doloroso quebranto me toma. Formas redondas e redondas se entrecruzam
no ar. Faz calor de verăo. Navego na minha galera que arrosta os ventos
de um verăo enfeitiçado. Folhas esmagadas me lembram o chăo da
infância. A măo verde e os seios de ouro — é assim que pinto a marca de
Sată. Aqueles que nos temem e ŕ nossa alquimia desnudavam feiticeiras e
magos em busca da marca recôndita que era quase sempre encontrada
embora só se soubesse dela pelo olhar pois esta marca era indescritível
e impronunciável mesmo no negrume de uma Idade Média — Idade Média, és
a minha escura subjacęncia e ao clarăo das fogueiras os marcados dançam
em círculos cavalgando galhos e folhagens que săo o símbolo fálico da
fertilidade: mesmo nas missas brancas usa-se o sangue e este é bebido.

Escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser entăo.

Mas eternamente é palavra muito dura: tem um “t”
granítico no meio. Eternidade: pois tudo o que é nunca começou. Minha
pequena cabeça tăo limitada estala ao pensar em alguma coisa que năo
começa e năo termina — porque assim é o eterno. Felizmente esse
sentimento dura pouco porque eu năo agüento que demore e se
permanecesse levaria ao desvario. Mas a cabeça também estala ao
imaginar o contrário: alguma coisa que tivesse começado — pois onde
começaria? E que terminasse — mas o que viria depois de terminar? Como
vęs, é-me impossível aprofundar e apossar-me da vida, ela é aérea, é o
meu leve hálito. Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso.
Quero a profunda desordem orgânica que no entanto dá a pressentir uma
ordem subjacente. A grande potęncia da potencialidade. Estas minhas
frases balbuciadas săo feitas na hora mesma em que estăo sendo escritas
e crepitam de tăo novas e ainda verdes. Elas săo o já. Quero a
experięncia de uma falta de construçăo. Embora este meu texto seja todo
atravessado de ponta a ponta por um frágil fio condutor — qual? o do
mergulho na matéria da palavra? o da paixăo? Fio luxurioso, sopro que
aquece o decorrer das sílabas. A vida mal e mal me escapa embora me
venha a certeza de que a vida é outra e tem um estilo oculto.

Este texto que te dou năo é para ser visto de perto:
ganha sua secreta redondez antes invisível quando é visto de um aviăo
em alto vôo. Entăo adivinha-se o jogo das ilhas e vęem-se canais e
mares. Entende-me: escrevo-te uma onomatopéia, convulsăo da linguagem.
Transmito-te năo uma história mas apenas palavras que vivem do som.
Digo-te assim:

“Tronco luxurioso”

E banho-me nele. Ele está ligado ŕ raiz que penetra
em nós na terra. Tudo o que te escrevo é tenso. Uso palavras soltas que
săo em si mesmas um dardo livre: “selvagens, bárbaros, nobres
decadentes e marginais”. Isto te diz alguma coisa? A mim fala.

Mas a palavra mais importante da língua tem uma única letra: é. É.

Estou no seu âmago.

Ainda estou.

Estou no centro vivo e mole.

Ainda .

Tremeluz e é elástico. Como o andar de uma negra
pantera lustrosa que vi e que andava macio, lento e perigoso. Mas
enjaulada năo — porque năo quero. Quanto ao imprevisível — a próxima
frase me é imprevisível. No âmago onde estou, no âmago do É, năo faço
perguntas. Porque quando é — é. Sou limitada apenas pela minha
identidade. Eu, entidade elástica e separada de outros corpos.

Na verdade ainda năo estou vendo bem o fio da meada
do que estou te escrevendo. Acho que nunca verei — mas admito o escuro
onde fulgem os dois olhos da pantera macia. A escuridăo é o meu caldo
de cultura. A escuridăo feérica. Vou te falando e me arriscando ŕ
desconexăo: sou subterraneamente inatingível pelo meu conhecimento.

Escrevo-te porque năo me entendo.

Mas vou me seguindo. Elástica. É um tal mistério essa
floresta onde sobrevivo para ser. Mas agora acho que vai mesmo. Isto é:
vou entrar. Quero dizer: no mistério. Eu mesma misteriosa e dentro do
âmago em que me movo nadando, protozoário. Um dia eu disse
infantilmente: eu posso tudo. Era a antevisăo de poder um dia me largar
e cair num abandono de qualquer lei. Elástica. A profunda alegria: o
ęxtase secreto. Sei como inventar um pensamento. Sinto o alvoroço da
novidade. Mas bem sei que o que escrevo é apenas um tom.

Nesse âmago tenho a estranha impressăo de que năo pertenço ao gęnero humano.

Há muita coisa a dizer que năo sei como dizer. Faltam
as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem
dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu
adivinho Se houver força. Atrás do pensamento năo há palavras: é-se.
Minha pintura năo tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno
do é-se sou puro ęxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és.

E sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é
mítico, fantástico e gigantesco: a vida é sobrenatural. E caminho
segurando um guarda-chuva aberto sobre corda tensa. Caminho até o
limite do meu sonho grande. Vejo a fúria dos impulsos viscerais:
vísceras torturadas me guiam. Năo gosto do que acabo de escrever — mas
sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. E
respeito muito o que eu me aconteço. Minha essęncia é inconsciente de
si própria e é por isso que cegamente me obedeço.

Estou sendo antimelódica. Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários. Para onde vou? e a resposta é: vou.

Quando eu morrer entăo nunca terei nascido e vivido: a morte apaga os traços de espuma do mar na praia.

Agora é um instante.

Já é outro agora.

E outro. Meu esforço: trazer agora o futuro para já.
Movo-me dentro de meus instintos fundos que se cumprem ŕs cegas. Sinto
entăo que estou nas proximidades de fontes, lagoas e cachoeiras, todas
de águas abundantes. E eu livre.

Ouve-me, ouve meu silęncio. O que falo nunca é o que
falo e sim outra coisa. Quando digo “águas abundantes” estou falando da
força de corpo nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na
verdade falo porque eu mesma năo posso. Lę a energia que está no meu
silęncio. Ah tenho medo do Deus e do seu silęncio.

Sou-me.

Mas há também o mistério do impessoal que é o “it”:
eu tenho o impessoal dentro de mim e năo é corrupto e apodrecível pelo
pessoal que ŕs vezes me encharca: mas seco-me ao sol e sou um impessoal
de caroço seco e germinativo. Meu pessoal é húmus na terra e vive do
apodrecimento. Meu “it” é duro como uma pedra-seixo.

A transcendęncia dentro de mim é o “it” vivo e mole e
tem o pensamento que uma ostra tem. Será que a ostra quando arrancada
de sua raiz sente ansiedade? Fica inquieta na sua vida sem olhos. Eu
costumava pingar limăo em cima da ostra viva e via com horror e
fascínio ela contorcer-se toda. E eu estava comendo o it vivo. O it
vivo é o Deus.

Vou parar um pouco porque sei que o Deus é o mundo. É
o que existe. Eu rezo para o que existe? Năo é perigoso aproximar-se do
que existe. A prece profunda é uma meditaçăo sobre o nada. É o contato
seco e elétrico consigo, um consigo impessoal.

Năo gosto é quando pingam limăo nas minhas
profundezas e fazem com que eu me contorça toda. Os fatos da vida săo o
limăo na ostra? Será que a ostra dorme?

Qual é o elemento primeiro? logo teve que ser dois para haver o secreto movimento íntimo do qual jorra leite.

Disseram-me que a gata depois de parir come a própria
placenta e durante quatro dias năo come mais nada. Só depois é que toma
leite. Deixa-me falar puramente em amamentar. Fala-se na subida do
leite. Como? E năo adiantaria explicar porque a explicaçăo exige uma
outra explicaçăo que exigiria uma outra explicaçăo e que se abriria de
novo para o mistério. Mas sei de coisas it sobre amamentar criança.

Estou respirando. Para cima e para baixo. Para cima e
para baixo. Como é que a ostra nua respira? Se respira năo vejo. O que
năo vejo năo existe? O que mais me emociona é que o que năo vejo
contudo existe. Porque entăo tenho aos meus pés todo um mundo
desconhecido que existe pleno e cheio de rica saliva. A verdade está em
alguma parte: mas inútil pensar. Năo a descobrirei e no entanto vivo
dela.

O que te escrevo năo vem de manso, subindo aos poucos
até um auge para depois ir morrendo de manso. Năo: o que te escrevo é
de fogo como olhos em brasa.

Hoje é noite de lua cheia. Pela janela a lua cobre a
minha cama e deixa tudo de um branco leitoso azulado. O luar é
canhestro. Fica do lado esquerdo de quem entra. Entăo fujo fechando os
olhos. Porque a lua cheia é de uma insônia leve: entorpecida e dormente
como depois do amor. E eu tinha resolvido que ia dormir para poder
sonhar, estava com saudade das novidades do sonho.

Entăo sonhei uma coisa que vou tentar reproduzir.
Trata-se de um filme que eu assistia. Tinha um homem que imitava
artista de cinema. E tudo o que esse homem fazia era por sua vez
imitado por outros e outros. Qualquer gesto. E havia a propaganda de
uma bebida chamada Zerbino. O homem pegava a garrafa de Zerbino e
levava-a ŕ boca. Entăo todos pegavam uma garrafa de Zerbino e
levavam-na ŕ boca. No meio o homem que imitava artista de cinema dizia:
este é um filme de propaganda de Zerbino e Zerbino na verdade năo
presta. Mas năo era o final. O homem retomava a bebida e bebia. E assim
faziam todos: era fatal. Zerbino era uma instituiçăo mais forte que o
homem. As mulheres a essa altura pareciam aeromoças. As aeromoças săo
desidratadas — é preciso acrescentar-lhes ao pó bastante água para se
tornarem leite. É um filme de pessoas automáticas que sabem aguda e
gravemente que săo automáticas e que năo há escapatória. O Deus năo é
automático: para Ele cada instante é. Ele é it.

Mas há perguntas que me fiz em criança e que năo
foram respondidas, ficaram ecoando plangentes: o mundo se fez sozinho?
Mas se fez onde? em que lugar? E se foi através da energia de Deus —
como começou? será que é como agora quando estou sendo e ao mesmo tempo
me fazendo? É por esta ausęncia de resposta que fico tăo atrapalhada

Mas 9 e 7 e 8 săo os meus números secretos. Sou uma
iniciada sem seita. Ávida do mistério. Minha paixăo pelo âmago dos
números, nos quais adivinho o cerne de seu próprio destino rígido e
fatal. E sonho com luxuriantes grandezas aprofundadas em trevas:
alvoroço da abundância, onde as plantas aveludadas e carnívoras somos
nós que acabamos de brotar, agudo amor — lento desmaio.

Será que isto que estou te escrevendo é atrás do
pensamento? Raciocínio é que năo é. Quem for capaz de parar de
raciocinar — o que é terrivelmente difícil — que me acompanhe. Mas pelo
menos năo estou imitando artista-de-cinema e ninguém precisa me levar ŕ
boca ou tornar-se aeromoça.

Vou te fazer uma confissăo: estou um pouco assustada.
É que năo sei aonde me levará esta minha liberdade. Năo é arbitrária
nem libertina. Mas estou solta.

De vez em quando te darei uma leve história — área
melódica e cantabile para quebrar este meu quarteto de cordas: um
trecho figurativo para abrir uma clareira na minha nutridora selva.

Estou livre? Tem qualquer coisa que ainda me prende.
Ou prendo-me a ela? Também é assim: năo estou toda solta por estar em
uniăo com tudo Aliás uma pessoa é tudo. Năo é pesado de se carregar
porque simplesmente năo se carrega: é-se o tudo.

Parece-me que pela primeira vez estou sabendo das
coisas. A impressăo é que só năo vou mais até as coisas para năo me
ultrapassar. Tenho certo medo de mim, năo sou de confiança, e desconfio
do meu falso poder.

Ŕs tręs e meia da madrugada acordei. E logo elástica
pulei da cama. Vim te escrever. Quer dizer: ser. Agora săo cinco e meia
da manhă. De nada tenho vontade: estou pura. Năo te desejo esta
solidăo. Mas eu mesma estou na obscuridade criadora. Lúcida escuridăo,
luminosa estupidez.

Muita coisa năo posso te contar. Năo vou ser autobiográfica. Quero ser “bio”.

Escrevo ao correr das palavras.

Antes do aparecimento do espelho a pessoa năo
conhecia o próprio rosto senăo refletido nas águas de um lago. Depois
de certo tempo cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora
a minha. É um rosto nu. E quando penso que inexiste um igual ao meu no
mundo, fico de susto alegre. Nem nunca haverá. Nunca é o impossível.
Gosto de nunca. Também gosto de sempre. Que há entre nunca e sempre que
os liga tăo indiretamente e intimamente?

No fundo de tudo há a aleluia.

Este instante é. Vocę que me lę é.

Custa-me crer que eu morra. Pois estou borbulhante
numa frescura frígida. Minha vida vai ser longuíssima porque cada
instante é. A impressăo é que estou por nascer e năo consigo.

Sou um coraçăo batendo no mundo.

Vocę que me lę que me ajude a nascer.

Espere: está ficando escuro. Mais.

Mais escuro.

O instante é de um escuro total.

Continua.

Espere: começo a vislumbrar uma coisa. Uma forma
luminescente. Barriga leitosa com umbigo? Espere — pois sairei desta
escuridăo onde tenho medo, escuridăo e ęxtase. Sou o coraçăo da treva.

O problema é que na janela de meu quarto há um
defeito na cortina. Ela năo corre e năo se fecha portanto. Entăo a lua
cheia entra toda e vem fosforescer de silęncios o quarto: é horrível.

Agora as trevas văo se dissipando.

Nasci.

Pausa.

Maravilhoso escândalo: nasço.

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